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Kiss: 878 vidas sem julgamento

Os dias 27 reverberam sempre diferentes, não há um único dia 27 desde o de janeiro de 2013, que não seja de introspecção, solidariedade e uma profunda lástima banhada de incredulidade. Nos primeiros anos, algo curioso acontecia, toda vez que a noite do 26 se anunciava, deparava-me, com um estado de agitação involuntária, incrível, a noite passava e a insônia era muito persistente, o 27 chegava despercebido, contudo trazia com ele o seu peso.

Demorei um certo tempo para perceber, que de forma não intencional, meu subconsciente ativava uma noite intranquila, relembrando de forma menos caótica a noite que não teve fim.

Naquela noite, recebi uma bênção inestimável: fui agraciada com a vida do meu irmão, um sobrevivente. A consternação era tão profunda e tão coletiva que foi impossível esboçar qualquer sentimento de gratidão e de alívio. Diante de tanta tragédia, seria egoísmo sentir privilégio por não ter perdido uma pessoa amada. A devastação generalizada chegava bem antes, transcendia todos os sentimentos e nocauteava o coração. Perdi amigos, perdi esperança, perdi fé, perdi parte da alma.

Na verdade, o mundo perdeu. Perdeu histórias incríveis que jamais serão contadas, perdeu risadas, perdeu juventude, perdeu um futuro. Poderia facilmente escrever um livro sobre o pesadelo da noite da tragédia da Boate Kiss. Será impossível esquecer cada detalhe do horror vivido. Todavia, faltaria força e sanidade para colocar tudo no papel.

As famílias são heroínas, transformaram dor em generosidade, lapidaram os sentimentos e encontraram na empatia o estímulo para prosseguir. Não se pode admitir que os mesmos erros sejam cometidos e outros futuros incríveis sejam desperdiçados traiçoeiramente.

De um modo muito peculiar, mantenho-me conectada intimamente com os anseios coletivos de um desfecho judicial digno, que consiga transmitir um mínimo de conforto aos familiares que se mantém incansáveis ano após ano, na luta para que nunca mais se repita. Considerado o maior julgamento da história do Judiciário do Rio Grande do Sul, o processo também é um dos maiores: são 16,6 mil páginas distribuídas em 79 volumes. São 242 vítimas fatais e 636 sobreviventes, ou seja, 878.

Os números apresentados, explicam, facilmente, os oito anos de tramitação do processo. Particularmente, acredito que este feito não seguiu a lógica do tempo processual, já que, em causas muito mais simplórias, as tramitações de alguns anos ocorrem de forma bem corriqueira, infelizmente. Contudo, para aqueles que aguardam uma resposta do judiciário, este tempo de oito anos é infinitamente maior do que o esperado, a angústia e o sentimento de impunidade foram se alimentando do tempo.

Quando finalmente o julgamento é marcado, coincide com a infelicidade de outra tragédia, o começo de uma pandemia global, que acaba por alongar ainda mais a espera de quem se mantém em vigília há oito anos. Superado o momento crítico da pandemia, o julgamento se aproxima, marcado para o próximo 1º de dezembro, no Foro Central de Porto Alegre.

Ocorre que o Foro Central não comporta o número de partes envolvidas, e retirar as famílias desse momento processual tão importante é indigno e revoltante.

As famílias das vítimas têm o direito de "olhar a justiça nos olhos". Aliás, esse é o requisito básico para que esse julgamento tenha o mínimo de dignidade na sua essência. Não comportar as partes interessadas fere substancialmente o que o ato do julgamento se propõe, o júri nada mais é, que a sociedade participando de um julgamento, é a prestação de contas à sociedade que necessita de respostas.

Independentemente do resultado do julgamento, se não comportar o acompanhamento dos mais interessados, ele poderá ser tudo, menos justo.

Texto: Juliane Müller Korb
Advogada

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